Há uma semana recebi um email de uma amiga da faculdade me convidando para ser voluntária durante um sábado, em Petrópolis, uma das cidades afetadas pelas chuvas na Região Serrana. Mesmo respondendo o email logo depois de lê-lo, confesso que fiquei ainda um pouco indecisa se iria. Ainda bem que fui.
Ontem, eu e, aproximadamente, 50 pessoas fomos para o Vale do Cuiabá, que fica no bairro de Itaipava. Demoramos um pouco para chegar até o local, porque o ônibus que estávamos teve que pegar uma credencial, pois o acesso ao Vale do Cuiabá está restrito.
O cenário é desolador, casas soterradas, outras com a marca de até aonde a água foi e ainda algumas que só restaram os escombros. O lugar ainda está destruído, mas como os próprios moradores me disseram que muita coisa já foi retirada. Caminhões e retro escavadeiras são vistos a todo o momento. O trabalho por lá não para e pelo visto não irá parar nem tão cedo. Quando passava de carro, olhava aquelas casas, muitas simples, ainda cheias de lama e os moradores tirando carrinhos de mão lotados também de lama.
Vale do Cuiabá é uma região afastada do centro de Itaipava, me lembraria muito interior de Minas, com aquelas casas simples e isoladas, se não fossem algumas exceções de casas e pousadas muito bonitas e sofisticadas. Algumas não foram afetadas pelas chuvas por ficarem no topo do morro, mas são poucas. A parte plana do Vale do Cuiabá está toda devastada, só vê casas destruídas, árvores caídas, lama e muita poeira. Com o tempo seco que tem feito e com a quantidade de carros, caminhões e ônibus que passam constantemente, o que resta é muita poeira.
Mas não é somente isso que nos entristece, o pior é ver as pessoas que passaram por tudo isso, que viram a chuva cair com toda a força e o rio Santo Antônio transbordar. Conversei com Lucimar, uma senhora que veio me contar como tudo aconteceu naquela noite de segunda-feira, mesmo sem eu não ter perguntado nada a ela. Ouvi e prestei atenção em cada detalhe que ela me dizia. Nós estávamos dentro da Igreja, onde 15 famílias estão morando e dividindo o mesmo espaço, quando outra mulher chegou com seu filho no colo e Lucimar na mesma hora pediu desculpa por estarmos na “casa” dela. Isso me chamou muito a atenção, ver que o que elas chamam de casa não passa dos, aproximadamente, quatro metros quadrados que cada família tem dentro do templo religioso. Algumas camas estão sendo feitas com os bancos e o altar da Igreja está cheio de roupas e alguns donativos.
Lucimar não perdeu nenhum parente na tragédia, mas se sente muito triste por ter perdido tudo que tinha e contou que foi Deus que a alertou para que ela, o marido, a filha e o neto saíssem de casa durante a madrugada. Não restou nada da casa simples, onde Lucimar morava, e tudo que ela conseguiu com muito esforço. Conversando comigo, ela lembrou da televisão, do carro e das fotos que tinha do filho que morreu há três anos. O neto dela, um adolescente, sentado ao meu lado, ouvia quieto tudo que a avó falava do pai dele e com um olhar triste disse que só restou o sofá e a geladeira. Lucimar também contou que quando ela e a família saíram da casa, durante a madrugada, viram cobras, sapos e o pior corpos de pessoas. Ela ainda está muito abatida e fica confusa ao relembrar da noite da tragédia. Uma das coisas que Lucimar repetiu para mim mais de duas vezes é que não sabe se era melhor ter morrido ou está vivendo na situação em que está.
Durante todo o dia, conversei com muitos adultos, mas preferi ficar perto das crianças e trazer alegria para elas. Teve uma que me encantou, a Maria Eduarda de 4 anos, que não queria sair do meu colo. Brinquei tanto com ela. Eu estava com um cordão da Nossa Senhora Aparecida e a Duda, linda, me disse: “Tia amei a sua senhora e o seu cabelo”. Duda é uma menina muito doce, afetuosa e carente de carinho. A todo o momento, Duda estava pedindo colo, abraço e beijo.
Eu e Duda à esquerda. À direita com os palhaços e as outras crianças do abrigo. |
Milene de 4 anos, com o cabelo loiro e cacheado nas pontas, veio até a mim e me disse que era aniversário dela. Meu Deus! Era aniversário dela e não tinha nenhum bolinho. Por um segundo fiquei sem reação, mas logo abri um sorriso e cantei parabéns junto com outra voluntária. Depois toda hora que via a Milene cantava parabéns.
As crianças se divertiram no pula-pula, na cama elástica. Brincaram com os velotrois e se sujaram muito de tinta, até sobrou pra mim, quando o João Pedro de 5 anos pintou minha camisa. Ainda brinquei muito de pique bandeirinha e “ameba”, uma adaptação da queimada a novas regras.
Durante o almoço, um senhor me conta que perdeu sua casa e a padaria, comércio que sustentava a família. Nessa hora foi inevitável não me lembrar do meu pai. O senhor me contou que tinha acabado de comprar uma máquina de fazer pão e perdeu tudo. Digo que me lembrei do meu amado pai, porque minha família também sempre foi sustentada pelo comércio do meu pai e sei o quanto é difícil adquirir máquinas, o quanto é caro. Vi na família desse senhor, a minha família em um momento de dificuldade.
Os adultos, é claro, estão mais fragilizados. Enquanto eu estava dentro da igreja conversando com a Lucimar, uma outra mulher disse que a tragédia deixou ela agressiva. São relatos assim, que nos fazem tentar entender o porquê disso, mas não temos respostas. Fazem-nos tentar buscar um jeito de ajudá-los, mas não conseguimos, sabe por quê? Porque essas pessoas só querem agora, uma casa. Roupas, alimentos e outros donativos, eles já têm. Essas pessoas estão agoniadas porque não sabem quando voltarão a ter uma casa e se terão. Infelizmente, essa é a realidade. Os moradores do morro do Bumba, em Niterói, estão até hoje sem casa, continuam morando em abrigos.
O medo dos desabrigados da Região Serrana também é ficar morando por tempo indeterminado em abrigos. Já é difícil morar com a nossa família sem ter nenhuma discussão, pior ainda morando com outras famílias, com hábitos e costumes diferentes. E ainda tem a questão de até quando haverá donativos. É verdade que agora tem muita roupa, alimento, água e produtos de higiene pessoal, mas uma hora isso irá acabar e o que será dessas pessoas?
O rio Santo Antônio agora corre manso, como sempre foi. É quase impossível acreditar que ele um dia transbordou e levou tudo que estava a sua frente.
O sábado acabou, eu e os outros voluntários fomos embora. Como as crianças devem ter ficado tristes vendo que o lugar não está mais tão cheio, que o “pula-pula” foi embora e que as tias e os palhaços também.
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